Oscar Luiz Brisolara
O facão, do alto do expositor da casa de antiguidades, olhava-me nos olhos como se fôssemos velhos parceiros. O dono notou nosso interesse mútuo… Com ele na mão, sentei-me numa mesa de pau mal trabalhada.
Tudo era fraterno entre nós… O homem nos deixou a sós… Fiquei-me ali sentado… O facão, a me desfiar uma lista de histórias antigas… Já começava a me enfadar das bravatas… A batalha terminava ali, disse em tom de conclusão… os mortos: degolados a maioria, desbuchados outros tantos, tiro no peito, furo na testa… muito sangue a enlamear tudo… incontáveis lanhaços de facão... muitos bravos sobravam imóveis sobre o capim molhado do sereno da noite avançada… A treva, apesar da lua clara, deixava o ambiente menos tétrico...
Terminava-se o trabalho com a degola dos reféns capturados… dar comida para inimigo era desperdício… No mato, afrouxando os cintos, a maioria deitava sobre os arreios… cobrindo a cara com um pelego… Os cavalos, pastando com o laço amarrado no pulso do dono…
Quando, pela manhã seguinte, a soldadesca se ia, os urubus faziam o resto do serviço… auxiliados por uma súcia de outros animais de rapina e seus sócios, começando por cães selvagens e arrematando com um moscardo que os odores repugnantes congregavam de todas canhadas miseráveis e repulsivas… transformavam aquele ermo no mais abjeto dos que por ali se estendiam...
De repente, no avançado das trevas, ouço uma fala embaraçada… voz de mulher… Pois, naqueles tempos, havia muita gente ruim por estas paragens do Rio Grande… dizia ela meio rouca e murmurante: Um castigo de correção de costumes era o pior de todos… o garrote… Pois sabe, dizia… quando se queria castigar um negro de jeito a ele sofrer muito… para servir de exemplo à negrada toda, usava-se o garrote…
Fazia-se uma espécie de colete bem justo ao peito do usuário do réu… costurava-se com tentos de couro que não se pudessem afrouxar… A ciência era bem simples... tinha de ser feito de couro bem cru, recém tirado do boi, ainda sangrando… pois esse encolheria mais...
Assim tradicionalmente acontecia, meu rapaz, aquilo era de cortar a alma… Nos primeiros dias, não era nada… Colocava-se o coitado no sol… o couro ia encolhendo ao tempo em que se desidratava… Depois de alguns dias, o torturado não comia mais… só gritava… urrava de dor…o couro encolhendo lentamente, dia e noite, um movimento imperceptível... mas constante, lento, como um torniquete de aço...apertava até o miserável cair prostrado…sem parar de gritar dia e noite, sem parar… sem parar… Por fim, alguns estremecimentos… as costelas quebradas… o pulmão, perfurado por um osso qualquer, parava… de repente… resfolegava lento… até… não mais...
Ressoam ainda em meus ouvidos berros de garrote… dos tantos que ouvi nesta vida desgraçada… Porém, um, mais que todos… Era um menino meu… forte e grande em seus dezesseis anos… o que era melhor, dizia o maldito fazendeiro… sofreria mais...
Fora de um caso meu lá com o desalmado patrão… quando eu não quis mais o homem, não me matou… pôs o nosso menino no garrote e me obrigou a ficar ali… assistindo tudo… impotente… gritando, desesperada… mais que o pobre coitado… o malvado, de quando em quando, passava pelo terreiro da tortura, cuspia no chão dizendo: Vá, vá, para com esses acabrunhamentos… escravo não tem tempo para essas vilezas...
O senhor já ouviu dizer de almas que morrem, deixando o corpo ainda vivo…? Pois nesse dia eu morri… só estou aqui contando tempo…p’ra cumprir meu destino…
Quando acordei de manhã, procurando o tal de facão… nada... Que é da sinistra mulher que me perturbava o sono? Nada… o sol nascia… a luz queimava-me as faces… furando a cortina da janela de meu apartamento… o DNA guarda memórias estranhas… Pois matute lá consigo se não é...