domingo, 10 de fevereiro de 2019



QUE É DO SONHO?...
Oscar Luiz Brisolara

Havia nascido no morro, menino infeliz, entre tantos que a vida plantara no mundo... Vivera da sorte que o morro confere. Sobretudo, sofrera dos males que o morro lhe dava: a fome... as dores... as ausências todas... e fora crescendo como se desenvolvem as bromélias e as urtigas nas fendas que o morro oferece... Em essência, era do morro...
Como ervas detestadas pelos passantes, crescera com os onze irmãos nas brenhas do morro, nos brejos que ninguém queria... A mãe - desgraçada nem mais nem menos que todas as demais do local - tivera lá seus sonhos... agora distantes. Sem dentes... sem apelos... só os que restam aos desgraçados do morro...
A mísera mãe, entre sonhos e mágoas, tomara conta dos pequenos como a vida deixara. Afora as desgraças que fustigam os corpos e torturam as almas, tinham todos os confortos de gente de bem... um canto para dormir... roupas para encobrir as carnes abjetas... um prato para trincar todo dia alguma coisa que caía em sua vida, sabe lá Deus como...
Sonhos? Todos os temos... desde a Cinderela que fora, na tenra idade de seus quinze anos... passados dos bares aos leitos de falsos príncipes com falsas verdades... Um deixara-lhe a sífilis... outro, um bebê raquítico e miserável... Desse modo, foram-se somando doenças a filhos... resultando o trapo em que se tornara, ainda antes dos trinta...
Agora sim... um sonho mais perto... na palma da mão... O menino mais velho tomara caminho... do campinho do morro, da bola de meia, chegara ao mundo dos bons... dos times pequenos, chegara ao timão... já estava em disputa entre os clubes mais ricos...
Seria madame, a mãe... Paris... Nova Iorque... um pano bonito... carro de luxo... dinheiro à vontade... As plásticas fariam o reverso do tempo... o milagre que a ciência reserva às socialites...
Voltaria ao morro... p'ra causar inveja às demais desvalidas que a vida deixara... O topo é miúdo... é só para poucos que a sorte escolheu... Lá estava ela, sonhando, sentada num banco de pau...
Traria bombons p'ra a meninada da volta... Roubaram seu carro!!! Deixa p'ra lá... tenho outros... Cheirosa... gostosa de novo... com dinheiro na mão. Jamais faltaria um amante mais belo e esbelto... que chutaria em seguida por outro mais ardente...
Agora o Flamengo... menino danado... era coisa de tempo... de ano... de meses... um dia qualquer... e os delírios de todos... guardados nas frinchas da história... que encobre ciladas... que gera milagres para os abençoados... Mas esses... ah! esses são raros... tão raros que aos muitos só resta a ilusão, que mata na alma os delírios da mente...
Que é do sonho? Só lágrima e dor... uma dor bem mais forte pela perda do prêmio que estava na palma da mão... O demo sorria... em seu beiço de mau... Os vizinhos diziam: Bem feito! Que Deus me perdoe!
Que é do sonho? O fogo queimou...
E a velha do lado, em profecia e demência dizia: Cadê o toucinho que estava aqui?...

(Em homenagem aos 10 meninos do Flamengo, mortos na dormitório do Clube em 2019.)