sábado, 19 de setembro de 2015

LINGUAGEM - A CRASE É UM PROCESSO LINGUÍSTICO UNIVERSAL, MAS QUAL A UTILIDADE DE MARCAR ALGUNS CASOS COM ACENTO GRÁFICO COMO OCORRE NA LÍNGUA PORTUGUESA?

 Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara


A crase é um fenômeno geral das línguas, já constatado de há muito tempo. Na língua grega clássica já se pode perceber esse processo. Veja-se o seguinte caso: γ κα (egô kái), cuja tradução é “eu e”, transforma-se em καγ (kagô), ou seja, inverte-se a distribuição dos termos, κα ἐγώ (kai egô) em que se fundem o alfa (α) de καὶ, com o épsilon () de ἐγώ, resultando uma única palavra καγώ, desaparecendo o iota () final de  καὶ.
No francês falado contemporaneamente podem-se constatar inúmeros exemplos de crase como é o caso de “M'enfin! por "mais enfin" (Mas, enfim!). Em espanhol, há a crase da preposição de com o artigo el, resultando del. Assim se poderiam encontrar exemplos de crase de vogais em muitos outros idiomas.
As línguas não são estáveis, como qualquer outro elemento social, estão em constante transformação pelas mais diversas razões. Desde as mudanças no mundo pragmático, com a criação e o desaparecimento de certo tipo de objetos, até os contatos com outros idiomas que provocam importações de termos e expressões ao gosto e ao sabor de cada momento histórico. Tudo isso tem resultado mudanças na língua.
Essas alterações foram mais drásticas em momentos históricos de conquistas de povos por outros povos. Talvez o processo mais amplo de dominação no ocidente tenha sido a conquista romana de milhares de povos e a consequente imposição da língua latina aos dominados. Essa imposição gerou mesmo cinco idiomas e inúmeros dialetos.
Como as línguas fundam-se, em sua essência, na oralidade, as mudanças foram fônicas. Quando um povo deixa de falar um idioma para adotar outro, isso não se dá de imediato. É um fenômeno lento em que os falantes vão-se, primeiramente, tornando bilíngues. A seguir, surgem os novos falantes, que adotam o novo idioma.
Porém, o idioma abandonado ou de uso paralelo, deixa traços que se espelham no novo idioma adotado. Somente um pequeno grupo de falantes, de indivíduos mais cultos e preparados, consegue dominar quase que perfeitamente o manejo fonético, sintático e mesmo semântico da nova língua.
A grande maioria dos falantes realiza o novo idioma com grandes alterações em todos os níveis, desde a realização fonética dos sons até o emprego semântico dos vocábulos. Criam-se mesmo interlínguas, que se compõem de elementos de dois ou mais idiomas.
Um dos aspectos a serem considerados é que, nesses tempos primitivos em que houve a maioria das grandes transformações de idiomas, a quase totalidade da população era analfabeta. Sabe-se que a forma escrita da língua reforça a manutenção de estabilidade das estruturas representativas.
A crase é o resultado da fusão de fonemas vocálicos nessas mudanças. Façamos algumas demonstrações práticas em relação à língua portuguesa. A palavra latina nudus, por um alteração fonética, teve o apagamento do fonema /d/. O resultado deveria ser “nuu”. Como o não havia nenhum prejuízo de significado, a palavra ficou simplesmente nu. Então, diz-se que  houve uma crase do “u” da primeira sílaba “nu” de nudus, como o “u” da segunda sílaba “dus”. Com o apagamento do “s” final, a palavra latina nudus teve como resultado a palavra portuguesa nu. Isso é crase.
Houve uma tendência geral na passagem das palavras da língua latina para a língua portuguesa, através de séculos, de apagamento de toda a consoante sonora e entre duas vogais, de sílaba não tônica. Isso provocou numerosíssimos fenômenos de crase. Na palavra latina pedis ocorreu isso. Primeiramente, apagaram-se o “d” e o “s” final. Depois, fundiram-se por crase os dois “es”, resultando a palavra . Assim também, coloris perdeu o “l”, o “i” e o “s”, fundiram-se os dois “os”, resultando o termo cor.
Houve também fenômenos de crase na junção de duas palavras. É o caso da fusão do termo “outra” com “hora”, em que o “a” final de “outra” se funde com o “o” inicial de ”hora”, resultando o termo outrora. Também na junção da preposição “de” com o pronome “este”, resultou a palavra deste.
A crase que a gramática da língua portuguesa ordena marcar com acento grave (à) é resultado deste último caso de fusão. Ela ocorre quando a regência de um verbo exige a preposição a e o substantivo que compõe o objeto exige o artigo a. Quando se diz: Fui à casa de um amigo. O verbo ir é transitivo indireto, exigindo a preposição a. Quem vai, vai a algum lugar. Como essa casa é uma casa especificada, deve ser determinada pelo artigo a. Resultaria na construção Fui a a casa de um amigo. Esses dois “as”, fundidos em um único a constituem o que se chama de crase que deve ser marcada com o acento agudo.
Essa é apenas uma reflexão para principiantes nos estudos da linguagem. Os usuários experientes de nosso idioma seguramente julgarão dispensável esta demonstração. Porém, eu me pergunto sobre a necessidade da marcação da crase com acento gráfico, de acordo com a gramática de nossa língua.

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