quarta-feira, 23 de agosto de 2017

TU E VOCÊ - COMENTÁRIO GRAMATICAL



No uso de tu e você, no português contemporâneo, esses pronomes quase sempre se equivalem de forma pragmática, o locutor está-se referindo à pessoa com quem ele está falando. Porém, em termos teóricos, surgem acaloradas discussões.
Quando alguém diz: Se cuida! (tratamento muito comum, especialmente entre a população mais jovem), há uma terceira pessoa, 'se' e uma forma verbal em segunda pessoa 'cuida'.
Os gramáticos, para a solução do embate, apelam para a diferença entre as pessoas do discurso, que são as que participam de um ato de comunicação: a primeira, aquela que fala; a segunda, aquela com quem se fala; e a terceira, aquela sobre a qual se fala, e as pessoas gramaticais do verbo. Discursivamente, portanto, tu e você são segunda pessoa. Nas expressões 'tu sabes' e 'você sabe', não há dúvida alguma que ambos esses pronomes.'tu' e 'você', retomam a pessoa com quem se fala, ou seja, a segunda pessoa do discurso. Porém, já se percebe, evidentemente, a mudança da forma verbal, que resulta da mudança da pessoa verbal. Enquanto 'tu' comanda a segunda pessoa verbal 'sabes', você comanda a terceira pessoa verbal 'sabe', embora mantenha a segunda pessoa do discurso, a pessoa com quem se fala.
Somente uma abordagem histórica pode superar esse litígio. Acontece que, enquanto o pronome tu, desde sempre, é a segunda pessoa do discurso e ao mesmo tempo a segunda pessoa verbal gramatical, o pronome você atravessou um longo período histórico de transformações. Através da história, classes sociais diferentes ou posições sociais diferentes eram tratadas com formas de diferentes graus de reverência. Assim, um cidadão comum, ao referir-se a uma autoridade a a um cidadão de classe mais elevada, empregava formas de tratamento mais reverenciais. O mesmo ocorria dentro dos grupos sociais em que as mesmas reverências eram reservadas às pessoas mais velhas ou de mais precedência dentro do grupo. Assim, filhos ou netos tratavam seus pais ou avós com formas de tratamento de mais reverência. Ao pai (mãe), avô (avó) eram reservadas as formas de senhoria.
Você é resultado de uma mudança formal de um antigo pronome de composto de reverência, qual seja, vossa merce. Linguisticamente, esse pronome percorreu a o seguinte processo de mudança: vossa mercê > vossemecê > vosmecê > você. Está sendo ainda mais reduzido para cê. Esse emprego respeitoso que marcava a precedência do interlocutor sobre o falante marcava-se também pelo uso da terceira pessoa verbal, num quase que apagamento do locutor. Era quase como dizer: eu não merecia estar aqui, estou falando a um ausente, a um ele. 
Com a diminuição das distâncias sociais, a eliminação das classes nobres, e a aproximação entre os membros dos grupos familiares, o uso dos pronomes também recebeu efeito dessas mudanças sociais. Porém, restaram efeitos mesmo entre os grupos menos formais dos utentes do idioma.
Assim, na forma 'Se cuida', que equivale à expressão do registro mais formal a 'cuide-se', manteve-se a informalidade da segunda pessoa verbal 'cuida', mas, na estrutura profunda da mente, ficou o formalismo 'se'. Caso contrário, manter-se-ia a forma popular comum 'te cuida'. Esse me parece, sucintamente, o percurso histórico-gramatical que resultou nos usos atuais desse grupo de expressões idiomáticas.

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